DOCUMENTO CIENTÍFICO - Julho/2022

- Caio Leônidas: Professor Substituto, Curso de Fonoaudiologia, Departamento de Ciências da Vida, Universidade do Estado da Bahia. Professor de Fonoaudiologia, Centro Universitário Jorge Amado UNIJORGE). Docente e Coordenador do Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Audiologia, Instituto de Desenvolvimento Educacional (Faculdade IDE). Responsável Técnico do Núcleo de Neuroaudiologia da Incentivar - Núcleo de Desenvolvimento Infantil.

- Cresio Alves: Professor Associado de Pediatria, Coordenador do Serviço de Endocrinologia Pediátrica, Hospital Universitário Prof. Edgard Santos, Faculdade de Medicina, Universidade Federal da Bahia. Presidente do Departamento de Endocrinologia da Sociedade Brasileira de Pediatria. Coordenador do Comitê de Comunicação Social da SBTEIM

Introdução

Anquiloglossia, denominada popularmente “língua presa”, é uma anomalia congênita que ocorre quando uma porção de tecido embrionário, que deveria ter sofrido apoptose durante o desenvolvimento, permanece na face ventral da língua. Clinicamente, caracteriza-se por um frênulo lingual, “freio da língua”, anormalmente curto, que pode restringir os movimentos da língua. A espessura, elasticidade e o local de fixação do frênulo na língua e no assoalho da boca podem variar, fazendo com que ela seja classificada em leve ou parcial e grave ou completa, uma condição rara em que a língua está fundida com o assoalho da boca. Algumas vezes, familiares podem apresentar o mesmo problema.

A importância da identificação precoce da anquiloglossia deve-se ao fato de suas formas graves prejudicarem a amamentação ao diminuir a habilidade do recém-nascido para fazer uma pega e sucção adequadas, causar fissura no mamilo e ser uma fonte de estresse tanto para a criança como a mãe. Complicações tardias da anquiloglossia são: dificuldades na alimentação (p. ex., lamber sorvetes ou bombons, mastigar alimentos sólidos) e deglutição e alterações na fala (p. ex., dificuldade na produção de alguns fonemas).

A triagem neonatal da anquiloglossia é um procedimento simples que permite triar casos suspeitos e encaminhá-los para comprovação diagnóstica e tratamento precoce, se necessário.

Epidemiologia

Dados epidemiológicos da anquiloglossia são controversos, provavelmente em decorrência da inexistência de um protocolo de análise padronizado e unificado para o diagnóstico da alteração, o que contribui para subestimar sua ocorrência. De modo geral, a incidência varia entre 0,88% e 12,8%; e a prevalência entre 0,52% e 21%. Estudo brasileiro realizado na USP, em 2013, constatou uma ocorrência de 22,54% de alterações do frênulo lingual em bebês, o que significada que a cada 10 mil bebês, 2.254 têm anquiloglossia.

Triagem neonatal

A avaliação do frênulo lingual do recém-nascido, ou “teste de linguinha”, foi estabelecido pela Lei no 13.002, de 20 de junho de 2014, que torna obrigatória a realização desse exame em todos os hospitais e maternidades do Brasil, permitindo a triagem e, confirmado o diagnóstico, o tratamento precoce das limitações dos movimentos da língua causadas pela língua presa.

Diagnóstico

- Triagem: avaliação do frênulo lingual

O teste da linguinha é um procedimento não invasivo, indolor e rápido realizado por meio de manobra para visualizar o frênulo lingual (freio da língua) e avaliar a funcionalidade durante a amamentação ou o choro. Deve ser realizado, por profissional capacitado, antes da alta hospitalar, entre 24 e 48 horas de vida e no máximo, até 30 dias.

O Ministério da Saúde recomenda a utilização do Protocolo Bristol (BTAT: Bristol Tongue Assessment Tool) levando em consideração a praticidade de aplicação, validação e capacidade de predição de problemas na amamentação. O BTAT foi desenvolvido com base em prática clínica e com referência à Ferramenta de Avaliação da Função do Frênulo Lingual (ATLFF) de Hazelbaker. Ele fornece uma medida objetiva e de execução simples da gravidade da anquiloglossia, auxiliando na seleção dos lactentes que possam se beneficiar com a intervenção cirúrgica (frenotomia ou frenectomia) e na monitorização do efeito desse procedimento.

O protocolo BTAT considera quatro aspectos: (i) aparência da ponta da língua: formato de “coração” (escore 0); ligeira fenda no ápice (escore 1); arredondada (escore 2); (ii) fixação do frênulo no alvéolo inferior: anexado na região superior da gengiva (escore 0); na face interna da gengiva (escore 1); no meio do assoalho da boca (escore 2); (iii) elevação da língua durante o choro com a boca aberta: elevação mínima (escore 0); elevação apenas das bordas da língua em direção ao palato duro (escore 1); elevação completa da língua em direção ao palato duro (escore 2); e (iiii) protrusão da língua sobre a gengiva: ponta da língua atrás da gengiva (escore 0); ponta da língua sobre a gengiva (escore 1); ponta da língua se estendendo sobre o lábio inferior (escore 2) (Figura 1). Cada item avaliado pontua de zero a dois. As pontuações para os quatro elementos são somadas, resultando em um escore que varia de 0 a 8, com escores entre 0 e 3, indicando potencial comprometimento da função da língua.

Figura 1. Protocolo de avaliação da anquiloglosia pelo Bristol Tongue Assessment Tool.

Nos casos duvidosos, escores entre 4 ou 5, o exame deve ser repetido antes da alta hospitalar e na consulta da primeira semana de vida do recém-nascido, associado uma avaliação minuciosa da dinâmica da amamentação. Caso esse escore se confirme, não existam outros fatores que justifiquem as dificuldades na amamentação e essas sejam atribuídas à alteração do frênulo, considerar procedimento cirúrgico, levando em consideração eventos adversos, tais como hemorragias e recidivas. Também é necessário explicar aos responsáveis os riscos pertinentes ao procedimento cirúrgico e realizá-lo somente mediante assinatura de um termo de consentimento. Sugere-se, nos casos duvidosos, seguir o fluxograma de atenção aos lactentes com anquiloglossia na Rede de Atenção à Saúde (Figura 2).

Figura 2. Fluxograma de atenção aos lactentes com anquiloglossia na Rede de Atenção à Saúde.

O escore resultante da aplicação do BTAT deve ser registrado na Caderneta de Saúde da Criança, na seção “Observações”. Esse procedimento é importante para orientar o acompanhamento e evolução da criança após a alta hospitalar.

Outro protocolo bastante recomendado para a avaliação do frênulo lingual na literatura é o de avaliação do frênulo da língua para bebês desenvolvido pela fonoaudióloga brasileira Roberta Martinelli, o qual propõe não apenas a avaliação anatômica do frênulo, mas também busca identificar as implicações diretamente relacionadas nos movimentos da língua, que são importantes para sugar, mastigar, engolir e falar. Este protocolo é dividido em história clínica, avaliação anátomo-funcional e avaliação da sucção não nutritiva e nutritiva, e tem pontuações independentes e pode ser aplicado por partes, até o 6º mês de vida.

- Avaliação da mamada

A conduta frente a um recém-nascido com teste positivo para anquiloglossia deve sempre levar em consideração se essa condição interfere ou não na amamentação. Dessa forma, impõe-se a avaliação da mamada utilizando o Protocolo de Avaliação da Mamada proposto pelo UNICEF (Figura 3).

Figura 3. Protocolo de Avaliação da Mamada proposto pelo UNICEF

Tratamento

Ao se constatar que o frênulo é muito curto e impede a pega adequada no peito materno, os profissionais envolvidos deverão discutir o caso e, após comum acordo, indicar o tratamento para que não aconteçam procedimentos desnecessários. Após o procedimento cirúrgico, recomenda-se o acompanhamento da dupla mãe-bebê por período mínimo de 15 dias, para apoio ao estabelecimento e/ou manutenção da amamentação e possibilidade de recidivas.

Nos casos em que o frênulo curto não prejudique a amamentação, é necessário que o recém-nascido seja avaliado por fonoaudiólogo quando iniciar a mastigação, e aquisição da fala, para detectar se há ou não alteração da mastigação ou articulação de fonemas.

Controvérsias

Apesar de regulamentado, desde 2014, pelo Ministério da Saúde do Brasil, o teste da linguinha não é recomendado pelas principais sociedades médicas que cuidam de crianças com freio lingual curto.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) se opõe a obrigatoriedade do teste da linguinha argumentando que: (i) o tamanho do frênulo lingual é muito variável, e mesmo sendo curto, dificilmente exige frenectomia; (ii) os casos graves, que necessitam correção cirúrgica são facilmente diagnosticados; (iii) o exame da cavidade oral já faz parte do exame físico realizado pelo pediatra; (iv) não há consenso nos critérios utilizados para a avaliação e classificação anatômica do frênulo da língua, o que pode justificar a grande variação da incidência e prevalência dos casos; e (v) os estudos utilizados para aprovar o teste foram baseados em amostras pequenas e de metodologia questionável.

A Academia Brasileira de Otorrinolaringologia Pediátrica, também se opõe a obrigatoriedade do teste da linguinha, pelos mesmos motivos enumerados pela Sociedade Brasileira de Pediatria, acrescentando que: (i) todos os estudos apontam para a importância do seguimento (e não para um diagnóstico definitivo nas primeiras horas a dias de vida) dos recém-nascidos com anquiloglossia que apresentarem dificuldades de amamentação, sendo esse seguimento realizado pelo pediatra, (ii) a anquiloglossia que apresenta dificuldades para o recém-nascido e para a mãe apresenta baixa frequência na população e parece haver sobrediagnóstico deste problema, e (iii) o procedimento de frenectomia não é isento de riscos, ainda mais em locais sem estrutura adequada, como consultórios de profissionais não-médicos que não têm treinamento para lidar com complicações da anestesia local em bebês e complicações do procedimento em si (sangramento, infecção).

A Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica, em nota técnica sobre a frenectomia lingual em bebês, também se opõe a realização do teste da linguinha, acrescentando que: (i) houve um aumento nas indicações de frenectomia lingual na casa de 800% em todo o mundo, o que nos parece extremamente desproporcional, e (iii) o índice de complicações em secções de freio lingual é próximo de 8%. A maioria são sangramentos de fácil controle pelo cirurgião com compressão, coagulação ou suturas, mas algumas envolvem sangramentos mais graves, incisões no tecido muscular da língua, queimaduras e lesões de ductos salivares

Dia Nacional

O Dia Nacional do Teste da Linguinha é comemorado em 20 de junho.

Referências bibliográficas

1. Academia Brasileira de Otorrinolaringologia Pediátrica. Nota Técnica: Frenectomia lingual em recém-nascidos. Pulicado em: 2022. Acessado em: 03/07/2022. Disponível em: https://www.abope.org.br/wp-content/uploads/2022/05/Nota-tecnica-freio-lingual.pdf

2. Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica. Nota Técnica: Freio lingual - Frenectomia lingual. Publicado em: 12/05/2022. Acessado em: 03/07/2022. Disponível em: https://www.fonosp.org.br/images/NOTA_TECNICA__-_FREIO_LINGUAL_-_FRENOTOMIA_LINGUAL.pdf

3. Ballard JL, Auer CE, Khoury JC. Ankyloglossia: assessment, incidence, and effect of frenuloplasty on the breastfeeding dyad. Pediatrics 2002;110(5):1-6. 4. Brandão CA, Marsillac MWS, Barja-Fidalgo F, Oliveira BH. Is the Neonatal Tongue Screening Test a valid and reliable tool for detecting ankyloglossia in newborns? Int J Paediatr Dent. 2018 Jul;28(4):380-389.

5. BRASIL. Lei nº 13.002, de 20 de junho de 2014. Obriga a realização do Protocolo de Avaliação do Frênulo da Língua em Bebês. Acessado em: 20/04/2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13002.htm

6. BRASIL. Ministério da Saúde. Parecer Técnico Científico. Anquiloglossia e aleitamento materno: evidências sobre a magnitude do problema, protocolos de avaliação, segurança e eficácia da frenotomia. São Paulo: Ministério da Saúde; 2015.

7. Ferrés-Amat E, et al. The prevalence of ankyloglossia in 302 newborns with breastfeeding problems and sucking difficulties in Barcelona: a descriptive study. Eur J Paediatr Dent. 2017;18(4):319-25.

8. Francis DO, Krishnaswami S, McPheeters M. Treatment of ankyloglossia and breastfeeding outcomes: a systematic review. Pediatrics. 2015; 135(6):e1458-66.

9. Hazelbaker Assessment for Lingual Frenulum Function. Acessado em 20/04/2022. Disponível em: https://www.med.unc.edu/pediatrics/education/current-residents/rotation-information/newborn-nursery/hazelbaker_frenum.pdf

10. Ingram J, Johnson D, Copeland M et al. The development of a tongue assessment tool to assist with tongue-tie identification. Arch Dis Child Fetal Neonatal. 2015; 100(4):F344-8.

11. Ito Y. Does frenotomy improve breast-feeding difficulties in infants with ankyloglossia? Pediatr Int. 2014; 56(4):497-505.

12. Knox I. Tongue tie and frenotomy in the breastfeeding newborn. Neo Reviews. 2010; 11(9):513.

13. Kumar RK. Ankyloglossia in infancy: an Indian experience. Indian Pediatr. 2017;54(2):125-7.

14. Marchesan IQ. Lingual frenulum: quantitative evaluation proposal. Int J Orofacial Myology; 2005;31:39-48.

15. Martinelli RLC. Relação entre as características anatômicas do frênulo lingual e as funções de sucção e deglutição em bebês [dissertação]. Bauru: Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo; 2013.

16. Martinelli RLC, Marchesan IQ, Berretin-Felix G. Protocolo de avaliação do frênulo lingual para bebês: relação entre aspectos anatômicos e funcionais. Rev Cefac 2013;15(3):599-610.

17. Messner AH, Lalakea ML, Aby J, MacMahon J, Bair E. Ankyloglossia incidence and associated feeding difficulties. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2000;126:36-9.

18. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Coordenação-Geral de Ciclos da Vida, Coordenação de Saúde da Criança e Aleitamento Materno NOTA TÉCNICA Nº 11/2021-COCAM/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Avaliação do frênulolingual em recém-nascidos. Acessado em: 20/04/2022. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/image/?file=20210601_N_NT11AVALIACAOFRENULOLINGUALRN_772086272972157347.pdf

19. Power RF, Murphy JF. Tongue-tie and frenotomy in infants with breastfeeding difficulties: achieving a balance. Arch Dis Child. 2015;100(5):489-94.

20. Puapornpong P. et al. Comparisons of the latching on between newborns with tongue-tie and normal newborns. J Med Assoc Thai. 2014;97(3):255-9.

21. Ricke LA, Baker NJ, Madlon-Kay DJ, Defor TA. Newborn tongue-tie: prevalence and effect on breast-feeding. J Am Board Fam Pract. 2005;18(1):1- 7.

22. Sociedade Brasileira de Pediatria, Departamento Científico de Neonatologia. Nota de esclarecimento sobre o teste de avaliação do frênulo da língua em bebês (teste da linguinha. Publicado em 08/08/2014. Acessado em: 03/07/2022. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/pdfs/nota_esclarecimento-dc_neo.pdf

23. Sociedade Brasileira de Pediatria, Departamento Científico de Otorrinolaringologia. Nota de esclarecimento sobre o teste de avaliação do frênulo da língua em bebês (teste da linguinha. Publicado em 08/08/2014. Acessado em: 03/07/2022. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/2015/02/nota_esclarecimento-dc_otorrino.pdf

24. Venancio SI, Toma TS, Buccini GS, Sanches MTC et al. Anquiloglossia e aleitamento materno: evidências sobre a magnitude do problema, protocolos de avaliação, segurança e eficácia da frenotomia. Parecer Técnico-Científico. Instituto de Saúde. São Paulo, 2015.