DOCUMENTO CIENTÍFICO - Maio/2022
- Renata Andion Arruti: Médica do Serviço de Referência em Triagem Neonatal da APAE de Salvador, Endocrinologista Pediátrica da APAE de Salvador e do Hospital Geral Roberto Santos, Salvador – BA.
- Cresio Alves: Professor Associado de Pediatria, Coordenador do Serviço de Endocrinologia Pediátrica do Hospital Universitário Prof. Edgard Santos, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Presidente do Departamento de Endocrinologia da Sociedade Brasileira de Pediatria. Coordenador do Comitê de Comunicação Social da SBTEIM.
Introdução
Hiperplasia adrenal congênita (HAC), refere-se a um grupo heterogêneo de distúrbios genéticos, de herança autossômica recessiva, causada pela deficiência de uma das enzimas envolvidas na síntese do cortisol no córtex da suprarrenal. Tem uma morbimortalidade significativa, principalmente em recém-nascidos do sexo masculino, que não apresentam alteração de genitália ao nascimento. A triagem neonatal vem mudando esta realidade, e permitindo que estas crianças evoluam de forma favorável, com diagnóstico e tratamento precoces.
Epidemiologia
A incidência da deficiência da 21-OH varia de acordo com a região, mas, de forma geral, acomete 1:14.500 nascidos vivos. No Alaska, entre os esquimós da etnia Yupik, a incidência chega a 1:282. No Brasil, existem dados relativos a seis estados: Goiás (1:10.325), Minas Gerais (1:19.927), São Paulo (1:10.460), Santa Catarina (1:14.972), Rio Grande do Sul (1:13.551) e Bahia (1: 11.000).
A deficiência da 21-hidroxilase (21-OH) é responsável por 90 a 95% dos casos de HAC. No Brasil, a deficiência da 17α-hidroxilase é a segunda causa mais comum de HAC.
Etiologia
A deficiência da 21-hidroxilase é causada por mutação inativadora ou perda de função, autossômica recessiva, do CYP21A2 (cytochrome P450 family 21 subfamily A member 2), localizado no cromossomo 6p21.33, dentro do complexo principal de histocompatibilidade
Na deficiência da 21-OH, distúrbio investigado pela Triagem Neonatal, ocorre redução na concentração de cortisol, elevação dos níveis séricos de andrógenos e redução da concentração de mineralocorticoide, este último nas formas perdedoras de sal.
Classificação
A HAC por deficiência da 21-OH, pode ser classificada em forma clássica e não clássica. A forma clássica é subdividida em virilizante simples (25%), com atividade enzimática residual de 3 a 7% e perdedora de sal (75%), com menos de 2% de atividade enzimática. Nesta última, ocorre deficiência de mineralocorticoide o que pode levar a desidratação, choque e até mesmo óbito. A forma não clássica, tem início mais tardio, podendo ser diagnosticada na adolescência ou em adultos.
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas da deficiência da 21OH, exceto a atipia genital nos recém-nascidos do sexo feminino, tem início, habitualmente, a partir da segunda semana de vida, com vômitos, desidratação, perda ponderal, choro excessivo, irritabilidade, hiponatremia, hiperpotassemia, que, se não diagnosticados e tratados precocemente, evoluem para choque e até mesmo óbito.
No sexo feminino, ocorre virilização da genitália externa, em graus variados. No sexo masculino, a genitália externa é normal e, eventualmente, com manifestações de macrogenitossomia e/ou hiperpigmentação de bolsa escrotal.
Como no sexo feminino a genitália externa é atípica ao nascimento, é mais provável que se faça a suspeita diagnóstica precoce, embora vários estudos tenham demonstrado o não reconhecimento da atipia genital pelo neonatologista (ainda na sala de parto) ou pelo pediatra no acompanhamento posterior. As crianças do sexo masculino dependem da triagem neonatal para serem diagnosticados. Recém-nascidos com genitália atípica ao nascimento, ou com genitália de aspecto masculino, mas sem gônadas palpáveis, devem ser investigados para HAC.
Triagem neonatal
A triagem neonatal para HAC é importante e necessária, devido à ausência de alterações da genitália externa no sexo masculino, devido as manifestações clínicas inespecíficas podendo ser confundidas com distúrbios gastrintestinais (p. ex., alergia alimentar, refluxo gastroesofágico), pela possibilidade de registro civil equivocado nas pacientes do sexo feminino, pelo risco de crise de perda de sal, por poder causar pseudopuberdade precoce e pelo fato de ser facilmente tratada com medicamentos de baixo custo, impedindo o desenvolvimento das complicações citadas.
A triagem neonatal deve ser realizada entre o 3º e 5º dia de vida, com coleta de amostra de sangue em papel filtro, em todos os recém-nascidos, independente de prematuridade ou estresse neonatal, uma vez que existem valores de referência específicos, estabelecidos pelo Ministério da Saúde. O atraso na coleta pode impedir o diagnóstico em tempo hábil e levar a desfecho desfavorável.
No Brasil, o estado de Goiás foi o primeiro a adotar o programa de triagem da HAC seguido por Santa Catarina. Alguns estados, como Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo implementaram projetos pilotos. Em dezembro de 2012, o Ministério da Saúde incluiu a HAC no Programa Nacional de Triagem Neonatal. (PNTN).
Diagnóstico
Pelo Protocolo do Ministério da Saúde, a dosagem de 17-OHP, no papel filtro deve estar abaixo do P.99% para o peso ao nascimento. Recém-nascidos com valores acima do P.99% devem repetir, com urgência, a dosagem da 17-OHP no papel filtro. Crianças com 17-OHP, acima de 2 desvios-padrão do P.99% para o peso, devem ser convocados de imediato para consulta com especialista e confirmação da elevação da 17-OHP em dosagem sérica. Quadro 1, sumariza essas recomendações.
Quadro 1. Conduta a ser tomada quando do recebimento dos resultados da triagem nenonatal da 17-OHP no papel de filtro, de acordo com peso ao nascimento, tempo de vida na coleta (3º- 5º dia), utilizando o P.99% recomendado pelo Ministério da Saúde.
Peso ao nascimento (g)
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17-OHP (ng/mL) Entre 3º-5º dia de vida
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17-OHP (ng/mL) Entre 3º-5º dia de vida
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17-OHP (ng/mL) Entre 3º-5º dia de vida
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< 1500
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<110
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≥ 110 e < 220
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≥ 220
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≥ 1501-1999
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< 43
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≥ 43 e < 86
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≥ 86
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≥ 2000-2499
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<28
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≥ 28 e < 56
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≥ 56
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≥ 2501
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<15
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≥ 15 e < 30
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≥ 30
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Interpretação
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17-OHP normal
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17-OHP elevada
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17-OHP muito elevada
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Conduta
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Desnecessário novas investigações
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Repetir dosagem em papel-filtro
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Convocação de emergência para teste confirmatório sérico
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Na avaliação dos resultados do teste do pezinho, é necessário conhecer as principais causas de resultados falso-positivos e falso-negativos da dosagem da 17-OHP no papel-filtro:
- Resultados falso-positivos: prematuridade, nascer pequeno para idade gestacional, estresse, desidratação e icterícia.
- Resultados falso-negativos: coletas precoces (antes das primeiras 48h de vida), uso de corticoterapia pela mãe no periparto ou pelo bebê após nascimento. Em caso de transfusões, colher o teste do pezinho 1 dia antes do procedimento ou após 5 dias
Uma vez constatada a elevação da 17-OHP na triagem neonatal e o paciente convocado para exames, a investigação diagnóstica inicial consiste na anamnese, exame físico e investigação laboratorial. O exame físico deve incluir: peso, comprimento, superfície corpórea, estadiamento puberal, sinais de virilização e de pigmentação cutânea, medida de pressão arterial com tensiômetro adequado e cálculo de velocidade de crescimento e ganho ponderal. Os exames laboratoriais a serem solicitados na primeira consulta são: 17-OHP, androstenediona, testosterona, sódio, potássio, glicemia e renina. As dosagens de ureia, creatinina, cortisol sérico matinal e gasometria deverão ser realizadas nos casos mais graves.
A ultrassonografia pélvica é indicada em recém-nascidos com atipia genital, para avaliar presença de órgãos genitais internos (útero e ovários). A pesquisa de mutações no gene da 21-hidroxilase (CYP21A2) está indicado para aconselhamento genético, para afastar HAC em crianças assintomáticas com dosagens de 17-OHP repetidamente alteradas, quando o teste de estímulo com ACTH for inconclusivo ou quando a dosagem hormonal não puder ser feita com segurança devido ao uso recente ou atual de corticoide.
Tratamento
O tratamento medicamentoso consiste na reposição de glicocorticoide e ou mineralocorticoide, para corrigir os distúrbios hidroeletrolíticos, normalizar o cortisol sérico e diminuir a secreção de andrógenos, evitando o excesso ou subdosagem desses medicamentos.
O glicocorticoide recomendado é a hidrocortisona, sob a forma de comprimidos (não se deve usar solução oral), administrada na dose de 10 a 15 mg/m2/dia (dividida em 3 vezes ao dia), ou acetato de cortisona na dose de 18 a 20 mg/m2/dia (dividida em 3 vezes ao dia), ambos por via oral. O recomendável é diluir um comprimido macerado em pequena quantidade de líquido imediatamente antes da administração. Durante situações de estresse orientar aumento temporário da dose, dobrando ou triplicando a dose usual. Em caso de esquecimento de uma dose, não dobre a dose subsequente, mantendo a dose usual.
O mineralocorticoide recomendado é a fludrocortisona. A dose inicial, para recém-nascidos, é de aproximadamente 100 mcg, via oral, dividida em duas doses, podendo ser aumentada, se necessário, para até 300 mcg/dia, atentando para o risco de Insuficiência cardíaca congestiva de alto débito. Antes de aumentar a dose do mineralocorticoide deve-se checar o uso correto do sal de cozinha, para que não haja aumento desnecessário de dose. A partir dos 6 meses de idade, com a introdução de novos alimentos e maior maturidade tubular renal, a dose pode ser reduzida. Em caso de esquecimento de uma dose, não dobre a dose subsequente, mantendo a dose usual. O cloreto de sódio está indicado em pequenos lactentes em uso de leite materno ou fórmulas, na dose de 1 g ou 4 mEq/kg/dia (média de 1 a 2gramas/dia), por via oral
A crise adrenal deve ser conduzida como a seguir (i) hipotensão e desidratação (20 ml/kg, EV, de solução salina 0,9%, podendo repetir até 3 vezes, se necessário; (ii) hipoglicemia (soro glicosado 10%: 2 a 4 ml/Kg, EV, em bolus), (iii) hidrocortisona (50 a 100 mg/m2, EV, em bolus, seguida de manutenção a cada 6 horas
Pacientes e cuidadores deverão ser instruídos a portar uma identificação sobre a doença (cartão, pulseira ou colar de identificação), serem educados sobre o problema e se associarem a ABA (Associação Brasileira Addisoniana).
O aconselhamento genético deve ser realizado para os pais de indivíduos afetados e para o próprio portador de HAC ao atingir a idade reprodutiva.
O tratamento cirúrgico ou genitoplastia feminizante está indicado em meninas com genitália atípica, idealmente realizada em menores de 2 anos. A realização da cirurgia corretiva deve ser definida por equipe multidisciplinar, com avaliação da psicologia e consentimento dos pais, após todos os esclarecimentos sobre o procedimento e suas consequências.
Acompanhamento
O acompanhamento multidisciplinar é essencial e o seguimento com psicologia deve ser realizado em associação ao atendimento médico, em consultas regulares, envolvendo o paciente e seus familiares. O acompanhamento ambulatorial será mensal, até os 6 meses de idade; a cada 2 meses, entre 6 e 12 meses; a cada 3 meses, entre 1 e 3 anos; e a cada 6 meses, após os 3 anos.
Dia Mundial
A HAC faz parte das doenças raras e tem seu dia comemorado no Dia Mundial e Dia Nacional de conscientização sobre as doenças raras, que ocorre no último dia de fevereiro. No Brasil, a data foi instituída pela Lei nº 13.693/2018.
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